Por Lehgau-Z Qarvalho
Bósnia-Herzegovina, primavera de 3027. Cinco e meia da manhã. As folhas das árvores caem compulsivas ao vento infestando o chão ainda úmido da nevasca do dia anterior. É mesmo uma primavera bizarra. Como bizarros poderão parecer os fatos nesta manhã cinzenta.
Clayton, o cominho, alonga-se após um longo sono de três décadas. Vai até o espelho e ri de si mesmo: “Ah, ah, ah, ah, ah”. Lá fora, a cidade desperta pouco a pouco sem nem ao menos desconfiar do recém ocorrido. Que, de qualquer forma, não faz a menor diferença mesmo. Clayton jamais fora alguma coisa na vida. Nada além de um mero cominho que infestava a comida dos outros com um hálito fétido de órgãos genitais femininos pouco asseados. Em especial, pastéis, empadas e risoles recheados com frutos do mar.
Mas, após a experiência, tudo ficaria diferente, como de fato está a ocorrer.
Herzegovina-Neretva Canton, primavera de 3027. Cinco e meia da manhã. Jaderson Sinclair, cientista e camelô (tempos difíceis, sem dúvidas) dirigi-se ansioso para o curral, com o intuito de encilhar Guta, mula manca e amante nas horas vagas, e iniciar o trajeto que o levaria para a fama, a luxúria, o bem bom e às drogas logo em seguida. Ou não.
Condomínio Chapéu do sol, primavera de 3027. Cinco e meia da manhã. Edineide Kéllen da Silva dorme.
Bósnia-Herzegovina, primavera de 3027. Duas horas depois. Clayton, o cominho, em frente ao espelho, continua a rir de si mesmo: “Ah, ah, ah, ah, ah”.
Herzegovina-Neretva Canton, primavera de 3027. Sete e meia da manhã. Jaderson Sinclair, indiferente aos olhares insinuantes de Guta e enquanto viaja à incrível velocidade de cinco quilômetros horários, pensa que algo, talvez, tenha dado errado.
Condomínio Chapéu do sol, primavera de 3027. Sete e meia da manhã. Edineide Kéllen da Silva dorme.
Bósnia-Herzegovina, primavera de 3027. Cinco horas depois. Clayton, o cominho, pára de rir, sai da frente do espelho e vai até a janela, no segundo andar do prédio de tijolos de papel higiênico reciclado. Quase não acredita. Agora possui uma cabeça. E tronco também. E membros. Muitos membros. Clayton quase não cabe em si de tanta felicidade. A primeira coisa que faz, então, é meter um dos seus sete dedos indicadores de uma das mãos direitas em um dos vinte e três buracos do próprio nariz.
Na rua, uma multidão começa a aglomerar-se em frente ao prédio, apontando para a janela no segundo andar.
Enquanto isso, o Doutor Jaderson Sinclair pára no meio do caminho para urinar, e descobre que cometeu um terrível erro. Sacudiu antes e urinou depois. Profundamente irritado, espanca violentamente Guta, a mula, que, no entanto, parece gostar da sova. Quanto mais ele bate, mais ela se arreganha.
Quanto a Edineide Kéllen: ronca e baba.
Fim de tarde. As sirenes continuam a rasgar os incrédulos tímpanos urbanos. Uma multidão de repórteres operadores de câmeras de televisão acotovela-se em frente ao prédio. Apesar de a polícia já ter isolado a área, as autoridades locais informam números alarmantes: algo em torno de 239 mortos e mais de três mil hospitalizados. A maioria por conta de uma maionese caseira com salmonela inserida nos sanduíches ali vendidos por um ambulante de nome Çaçáulo (assim mesmo, com dois cês-cedilhas – o pai dele era gago e analfabeto, e o escrivão do cartório de registro civil um grande sacana galhofeiro). Clayton, não conseguindo entender bem o que está ocorrendo, solta um enorme e avassalador flato pelo ânus superior esquerdo e resolve doar um dos seus pâncreas para uma instituição de caridade.
O Doutor Jaderson Sinclair, já próximo aos portões de Sarajevo, exausto e faminto, pede a mão de Guta, a mula, em casamento. Esta, por sua vez, não aceita, dando-lhe um coice tal que o manda direto por cima dos imensos muros da cidade. Guta considera um sacrilégio a união estável entre seres de espécies diferentes.
Quanto a Edineide Kéllen: dorme feito uma almôndega.
Enquanto as crianças saboreiam os dezessete quilos de pâncreas com creme de leite, arroz branco e batata palha, cedidos gentilmente por Clayton, o Doutor Jaderson Sinclair corre feito doido pela cidade para saber onde pode encontrar pastéis, empadas ou risoles recheados com frutos do mar, ao mesmo tempo em que enfia goela abaixo o conteúdo translúcido de um pequeno copo cheio de uma bebida fermentada, feita da borra do caldo de cana, ou do cabaú, que, outrora, era servida aos animais e aos escravos dos antigos engenhos, conhecida como marafa, marvada, alpista, teimosinha ou tira-vergonha. Em cada boteco que adentra, na tentativa de catapultar a mula manca de seu coração, o Doutor Sinclair empina mais uma.
Quanto a Edineide Kéllen: acorda para cuspir...
...e volta a dormir.
Já é noite e a turba ensandecida se dispersa. A notícia da benevolência de Clayton se espalha e ele é convidado para ser ministro da saúde, cultura, educação e desporto, economia, relações exteriores, indústria e comércio, justiça, desenvolvimento, agricultura, ciência e tecnologia, meio ambiente, telecomunicações e herói nacional nas horas vagas. Nesta noite Clayton não consegue dormir. Tanto pela emoção quanto pela verruga cabeluda, vesga e fanha que cresce a olhos vistos em sua nuca esverdeada.
O Doutor Sinclair vaga pelas ruas gritando a plenos pulmões: “Guuuuda bia bula, beu aboor”, chorando soluçante e deveras condoído por ter gastado todo o seu dinheiro em água-que-passarinho-não-bebe.
Quanto a Edineide Kéllen...
...Afff!
Então, eis que não mais que de repente, surge Bubba, o belga, e sua babá balofa. Bubba bisbilhota bem bisbilhotado a bela bronca bíblica entre o bispo Blanco e a boate “Bolota Babilônica”, depois bate boca com a babá balofa por conta de uma baita bobagem e, brabo, entra no bote bege e ruma, só, para Beribéri (bem ao sul de Bogotá) para pescar bacalhau branco à bala e bebericar uma beberagem boa chamada “Bruma de belzebu”.
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Amanhece outra vez e Clayton, o cominho, logo ao acordar, tem a brilhante idéia de escrever suas memórias em um guardanapo sujo de batom que encontra no móvel de cabeceira logo ao seu lado. Mas, ao pegar o guardanapo e uma caneta, se dá conta de que não usa batom. Assim, muda de idéia e resolve escrever um best-seller intitulado: “O mistério do batom no guardanapo que não era meu”. Depois de decidir que o guardanapo ficaria intacto para a posteridade (talvez para ser utilizado na composição da capa do livro), Clayton pega um rolo de papel para telex marca Kerouac (colocado ali por Pont Eihro, o gnomo do tempo), mete uma das pontas na máquina de escrever (outra do gnomo supramencionado), e datilografa sem parar até atingir a totalidade de quarenta metros de papel preenchidos em prosa em espaço um e sem parágrafos. Dir-se-ia que poderia estar aditivado com colossais doses de Benzedrina (o tal Pont é mesmo da pá virada).
Após três semanas, com setenta quilos a menos, Clayton levanta-se para ir ao banheiro e resolve reler o que escreveu. Ao passar os olhos pelo título – já devidamente acoplado ao vaso sanitário –, percebe que não consegue entender bem o que registrou. Não sabe se é o batom ou o guardanapo que não era dele. Só então se lembra que é um analfabeto funcional e que, portanto, não consegue interpretar o que lê. Irritado, joga o rolo de papel de telex datilografado no lixo e sai em busca da sua iguaria predileta: algodão doce com tubaína sabor cola, quente.
Nesse ínterim, o Doutor Jaderson Sinclair, estando já mais ou menos refeito das amargas dores do coração, e sem um mísero vintém, passa a morar com uma codorna no sótão de um depósito clandestino de alcaparras, tomates secos e outras modalidades de condimentos.
Sinclair, dividido entre a dedicação exclusiva aos afazeres científicos, e uma forma de melhorar o gosto do milho moído, descobre, acidentalmente, que focinho de porco não é tomada. Alucinado, tenta, por oitos horas consecutivas, morder o próprio cotovelo. E, como se não bastasse, a codorna é abatida para servir de janta ao pessoal da faxina.
Concomitantemente, Clayton caminha desesperado na tentativa de encontrar o homem do algodão doce quando, bem na esquina das ruas quinze com mil setecentos e cinqüenta e nove, solta um uivo acachapante ao pisar no próprio saco escrotal. Yoko Martin, um importante produtor de bandas de rock que por ali está a passar, decide contratá-lo como vocalista da maior banda de rock da história.
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Nascido em uma pequena cidade ao norte de Londres e filho de pai carpinteiro, Yoko Martin (também conhecido como “O quinto elemento”), teria aprendido a tocar piano sem ajuda de mestres, ainda com dezesseis anos de idade. Depois de ter sido vitimado por uma juventude humilde (seus ancestrais foram pessoas de muitas posses, mas seu avô, Ringo Martin, gastou tudo o que herdou com bugigangas em lojas de 1,99), Yoko resolveu partir para o mundo do show business como produtor musical.
Tendo alçado ao sucesso grupos como “Acirema”, Martin possui uma idéia fixa: montar a maior banda de todos os tempos: “Os Selta E-B”.
Já no primeiro show, Clayton, logo ao adentrar o palco, tropeça nas próprias unhas dos pés e desaba seus mais de oitocentos quilos por sobre um roadie, matando-o instantaneamente. No mesmo momento, em virtude do tombo, solta um incomensurável arroto fazendo com que a chama do isqueiro de um segurança que chamusca a ponta de um cigarro logo à frente do placo, transforme-se em um potente maçarico, que calcina no ato vinte e cinco adolescentes, entre onze e dezesseis anos, mais uma senhora de noventa e dois que entrara ali por acaso, achando se tratar do “Encontro anual de pipocas alucinógenas para a melhor idade”.
No dia seguinte Os Selta E-B estão nas primeiras páginas dos jornais do mundo inteiro. A banda é catapultada instantaneamente ao sucesso e tem, em menos de duas horas, nada mais, nada menos que dezoito bilhões de downloads vendidos de seu primeiro single chamado: “Help , I am dying burned or below of eight hundred kilos” (sim, eles usaram um tradutor on-line).
Assim, Yoko Martin acaba por atingir o seu mais sórdido e ambicioso objetivo, entrando, definitivamente, para a história da humanidade por ter conseguindo o maior feito de todos os tempos em termos mercadológicos: em menos de cento e vinte minutos consegue fazer com que cada habitante do planeta Terra compre, não uma, mas três unidades idênticas da mesma música, via rede mundial de computadores (incluídos aí, é bom que se diga, crianças, recém nascidos, idosos, enfermos em plena mesa de cirurgia, mendigos, surdos, sovinas e cominhos mutantes). Sim, além de Clayton e dos demais integrantes da banda, por óbvio, o próprio Yoko Martin administrou seus três downloads, pagando um dólar cada unidade.
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O Doutor Jaderson Sinclair pensa em largar tudo e montar uma pousada no Nordeste. Mas, por um estranho motivo que até mesmo ele desconhece, torna-se presidente do fã-clube oficial dos Selta E-B e acaba por envolver-se com a cadelinha de uma groupie chamada Brigitte Bardot.
Confuso, sem saber se Brigitte Bardot é o nome da cadela ou da dona, casa-se com as duas e vai viver em um local ermo chamado Ermo (próximo a um local turvo chamado Turvo e vizinho de um município sombrio chamado Sombrio). Lá faz uma grande descoberta que muda de vez a sua vida (a dele é claro). Descobre o real significado da máxima timaiariana: “Tudo é tudo e nada é nada”. Sua vida (a dele é claro) toma, assim, um novo rumo e ele passa a se dedicar em tempo integral à física quântica.
Clayton, por sua vez, envolve-se com uma tigela de arroz que passa a mexer os pauzinhos até ele brigar com os demais integrantes da banda e, por conseqüência, em sessão solene, anunciar: “De brim, pulôver”.
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Na semana seguinte o pulôver feito todo em jeans vai parar nas passarelas da Semana Week da Moda Fashion e estoura no mundo todo como tendência para a coleção outono inverno. Clayton alega que a idéia não fora devidamente creditada a ele, fazendo as bolsas de valores despencarem. O colapso atinge a todos sem distinção de raça, credo, cor, religião, opção sexual, número de verrugas espalhadas pelo corpo ou preferências por muffins de cerejas quadradas de Nagasaki ou de romãs, gengibre e alcaçus das Ilhas Canárias.
Perseguido por todas as Máfias existentes no mundo, todas as religiões, todos os governos, Organizações Não Governamentais, equipes esportivas, sindicatos, rodas de samba e até entidades sem fins lucrativos, Clayton cai em desgraça total, geral e irrestrita. Não tendo mais para onde ir, pede ajuda ao primeiro que vê na frente que, para a sua sorte (a dele é claro), ou não, é Wilsonei Scrooge, o estelionatário.
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Na suíte do hotel Lancaster, em Paris, um Buda verde, um ogro fumando charuto, um Júpiter tonitruante, um pacote de Ruffles, a batata da onda (com um toque de sal, azeite de oliva, orégano e mel) – eis Wilsonei Scrooge. Ao seu lado, disfarçado de cão de crista chinês com elefantíase, Clayton, o cominho, babando e rezando para não ser reconhecido.
É quando adentra o recinto um Tal de Bernstein, homem de muitas posses e qualificados contatos. Clayton se vê obrigado a latir. Late uma, duas, três vezes, mas na quarta latida toma um pára-te-quieto no pé da orelha que o faz soltar um desmedido e denunciador impropério. Em seguida solta outro deslustre e tenta sair pela tangente, mas esquece dos catetos e da Hipotenusa (a princesa obesa e seus guarda-costas) filha do Tal de Bernstein.
Sim, é bater e valer, a Hipotenusa apaixona-se perdidamente pelo “cão falante” e seu pai o compra das mãos do Senhor Scrooge pela irrisória quantia de dois milhões de patacas escusas. Viajam naquela mesma noite para Dublin onde a moça lhe propõe casamento. Clayton ensaia um rosnadinho besta, mas a pretendente arranca-lhe dois caninos e um pré-molar com uma bofetada obrigando-lhe a dizer: “ssssim, acccceito”.
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Segue-se, portanto, os preparativos para a grande festa de casamento da princesa Hipotenusa com Clayton, cominho e plebeu. Os pais da princesa mandam trazer da Etiópia oitocentas crianças para compor o bolo vivo. Mediante o protesto de alguns membros conselheiros da corte (que teriam de lavá-las e vaciná-las antes, a fim de evitar maiores dores de barriga nos convidados mais sensíveis), o pai da princesa Hipotenusa afirma com voz doce, porém firme: “elas jamais teriam chance de fazer algo mais útil e esplendoroso em suas breves e insignificantes vidinhas mesmo!” E assim todos concordam enternecidos e passam a ocupar-se da certificação da qualidade do vinho.
Na manhã do derradeiro, Clayton é enviado para a pet shop mais chique da cidade para tomar banho, aparar as sobrancelhas e ser submetido a uma rigorosa conferência a respeito de sua circuncisão. A princesa Hipotenusa, por sua vez, banha-se com sangue de crocodilo maltês misturado a um concentrado de Artemisia absinthium. Os cabelos são tingidos com Q-suco de groselha, limão e uva caribenha; as unhas são pintadas com esmalte Colorama, nas cores rosa antigo, abóbora, nu, mousse de samambaia, crepúsculo egocêntrico, fungo e leito ungueal hemorrágico; nos dentes são incrustados pequenos diamantes sírios e, nas partes pudendas: licor de óleo de rícino com catuaba do agreste pernambucano.
Enquanto isso, ao roer uma unha e cuspi-la em direção a uma panela onde cozinha moela de galinha com páginas alternadas de clássicos da literatura mundial, e verdades descritas no interior da revista Seleções do Reader's Digest, o Doutor Sinclair descobre que produzindo o processo inverso ao da fabricação do esmalte de unhas, pode obter nitrocelulose - um explosivo originado ao se fazer as fibras de celulose (retiradas do algodão ou da madeira) reagirem em uma solução concentrada de ácido nítrico. Após a ebulição, a nitrocelulose torna-se solúvel nos solventes orgânicos e, depois da evaporação, deposita-se em uma película dura e brilhante chamada de laca, de onde, com a adição de corantes, adquire-se o famigerado cosmético.
A partir daí, o Doutor Sinclair pensa ter conseguido concentrar um poderoso poder de barganha em suas mãos e, assim, passa a escrever, frio e obstinado, sua carta de intenções aos governos das principais potências mundiais. A carta começa assim: MUAHAHAHAHAHAH...
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Minutos antes do casamento, o aflito Clayton, após erguer mais uma vez a perna esquerda para urinar, conhece Pierre Ordinaire, um médico disfarçado de maitre encarregado de coordenar o luxuriante buffet regado a brigadeiros ao molho de carne de cachorro com muita pimenta anencéfala e mocotó de senhoras após a lipoaspiração. Ordinaire também é responsável pelos drinks à base de uma erva com poderes suficientes para levar todos os convivas para o outro lado da moeda.
Ordinaire é um profundo conhecedor da cultura coreana, onde, ao desculpar-se, é preciso dizer “mian-hamnidá” (porém, se der um pisão no pé ou esbarrar em alguém na rua, não é necessário pedir desculpas, pois isso é muito comum por lá). O médico, que morou por quase uma década na Coréia, se viu forçado a deixar o país por motivos sentimentais: era casado com a maior gata da região, mas ofendeu-se profundamente quando ela teve de ser sacrificada para servir de prato principal ao presidente Kim Dae-jung e seus convidados em uma noite sem lua (sim, e eles ainda colocaram aquela maldita maçã em sua boca); e, também, por não agüentar um alfabeto composto por dez vogais e catorze consoantes.
Ordinaire dá a Clayton uma dose bastante significativa do drink por ele inventado, a partir da combinação de uma erva chamada chamu-chamu (importada das Antilhas) com baba de Bonga-bonga (um parente distante – pero no mucho – do temido e destemido marsupial diabo da Tasmânia). Clayton bebe de um só gole todo o conteúdo do copinho e, em seguida, solta dois flatos repolhudos e sente seu cérebro ricochetar nas paredes da caixa craniana; cospe para o lado, recolhe um dos seus treze olhos que cai ao chão e grita “santa broaca” quatrocentas e dezesseis vezes. Só então pressente a presença de Bimba, a fada verde.
A paixão se dá quase que instantaneamente (já que Clayton coçou o nariz um segundo antes). A fada, por sua vez, é verde. E por verde ser, não é de outra cor.
“És verde minha doce e apimentada fada?” Pergunta Clayton com voz fanhosa, babando pelo ouvido direito e abanando o rabinho.
“Não, é o reflexo da tua comida no meu rosto!” Redargúi a fada, colocando o delicado dedinho na boca e empurrando-o até a garganta, vomitando, assim, o galo defumado ao molho de brotoejas do Cazaquistão servido nas bodas de Canaã.
“Bimba que me fadas, ama digas!” Escorrega Clayton.
“Huuuuuugoooooooooooo...” Continua a Fada.
“Digas que me amas, fada Bimba!” Corrige-se Clayton, esfregando com a mão dois de seus olhos.
A fada olha para Clayton e Clayton olha para o galo. O galo olha para a fada e a fada olha para o galo que olha para Clayton que olha para a fada que olha para ela mesma e repete a operação (desta vez sem precisar do dedo).
Então, neste exato momento eis que surge...
...O Tal de Bernstein, o pai da noiva, empunhando uma serra elétrica, seguido de dois catetos (um com seis granadas e outro com uma bazuca) e, mais atrás, a princesa Hipotenusa aos prantos, com a cabeça de duas madrinhas em uma bandeja de prata, em uma das mãos, e um facão sujo de sangue na outra (só para mostrar do que é capaz).
E, eis que some: Ordinaire. A fada Bimba permanece a observar o próprio dedo, totalmente esverdeada. Clayton, por sua vez, pensa que chegou de vez a sua vez de uma vez por todas; apressa-se até a torre mais alta do castelo e lá (de uma incompreensível maneira) se tranca por fora, do lado de dentro.
Ouve-se, então, uma bruta e rouca voz de pai da noiva a ordenar:
“Tragam-no ao altar! Vivo, morto ou meia boca!”
Clayton, enquanto molha as calças, ouve passos na escada... Mais passos... Muito mais passos. Temendo por sua integridade física, mental, espiritual e matrimonial, Clayton tem uma idéia (é, uma idéia - o que não é pouca coisa para um cominho mutante)!
...Muito mais passos ainda... Muito mais passos ainda, ainda... Muito mais passos, passos, ainda, ainda, ainda...
Bimba, a fada verde, enquanto vomita parte do que ingeriu na Santa Ceia, entra pela janela da torre e faz amor com Clayton, dando a luz, logo em seguida, a uma ninhada de bruxinhas hermafroditas mais um engradado de Coca-cola e duas caixas de Engov. A fada então transforma Clayton em um urubu albino e todos alçam vôo pela janela, no mesmo momento em que os catetos, a noiva, o pai da noiva, três lêndeas domadas e todos os seis mil e quinhentos convidados conseguem derrubar a porta e adentrar o recinto.
Sim, a não ser pelo fato de que a fada Bimba esquece completamente como deve proceder para desfazer o encanto sobre Clayton, poder-se-ia dizer que ele sai ileso dessa. Porém, ao chegarem ao próximo vilarejo, exaustos da viagem, e assim que encontram um lugar para passarem a noite, Clayton, enquanto urubu albino, é confundido com uma cacatua australiana.
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“Hei, você! Não gostamos de cacatuas australianas por aqui.”
Escuta Clayton ao sair para arranjar um pouco de sumo de blatídeos para alimentar parte das crianças. A voz parece-lhe ter ecoado de um beco escuro ou de um cartaz da Pepsi afixado do outro lado da rua. Ou, ainda, do buraco de esgoto ou de um excremento de pombo ou de uma gota de suor frio que estaria a escorrer por sua testa, caso ele tivesse uma.
“Falou comigo? Falou comigo? Está falando comigo? Eu perguntei se você falou comigo! Fa-lou co-mi-go? Seu, seu, seu...” Ensaia Clayton, um pouco ante de começar a correr.
Trezentos e vinte e sete quadras adiante, Clayton pára para ensaiar mais um pouco: “Falou comigo? Fa-lou co-mi-go?”
E continua por mais sete dias, correndo e ensaiando.
Quando percebe que todos os seus dezenove pés estão recheados de bolhas; e todas as suas cento e trinta e três unhas (sim, cada pé tem dois mindinhos e dois dedões) estão encravadas, Clayton solta um gritinho estúpido e, finalmente, chama um táxi.
No táxi, conhece Travis Scorsese, o chofer, que lhe dá várias dicas sobre como matar presidentes, cafetões, pulgas, mosquitos, percevejos, chatos e baratas assanhadas (ou todos esses em um só). Viajam por três dias e três noites. Conversam sobre tudo: de Shakespeare a trolebus e hidroaviões; de Schopenhauer a nitroglicerina com sabor de baunilha selvagem; de Zé do Belo a suflê de ovas salgadas de esturjão (passando, é claro, pelas quimeras e bravatas de Ivan, o Terrível).
Ao chegar ao seu destino, Clayton lembra que não possui dinheiro algum para pagar a corrida. Travis então retorna ao ponto onde Clayton embarcou e o deixa lá, esbravejando:
“Vou lhe esperar aqui até que você consiga dinheiro para pagar a corrida, só então o levarei ao seu destino novamente, imbecil!”
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E Clayton morre.